Roberto BocaccioPiscitelli – Consultor Legislativo
Brasília, 05/05/2020
É o ano de 2050. Parece ter passado um século. Com os progressos da Medicina, da Biotecnologia e da Engenharia Genética, Roberto, como muitos outros da sua geração, atravessou a fronteira secular. Lembra com certa nostalgia a época distante de sua velhice.
É verdade que tudo se tornou mais previsível, mais uniforme. Agora, por exemplo, todo mundo tinha mais tempo para a sua rotina, até porque havia mais tempo para fazer menos coisas. Parece que tudo cabia no seu tempo.
Quando falava “no meu tempo” ou “eu me lembro quando”, seus netinhos atribuíam esses lapsos à sua idade, e um dia um deles lhe perguntou: vovô, quando eu ficar velho, vou ficar como você? E, para provocá-lo, perguntou-lhe como era esse seu tempo.
− Sente aqui, meu neto; vou-lhe contar.−E começou.
−Há muito tempo atrás, houve uma grande pandemia, que durou muitos anos e acabou com muita gente na Terra.
−E o que é pandemia, vovô?
−Pandemia é uma doença que ataca todo mundo, até que alguns aprendam a se defender contra ela.
−Então o senhor é mais forte?
−Não é bem isso. Sobreviveram aqueles que tiveram paciência ou puderam se isolar. A partir daí, muita coisa mudou. Por exemplo, sobrou muito mais espaço para os que ficaram e as pessoas ficaram mais distantes.Todos iam a muitos lugares diferentes e aos mesmos lugares. Estavam sempre com muita pressa.
−Então eles tinham obrigação de fazer essas mesmas coisas todos os dias?
−Era mais ou menos isso. E ficavam pouco tempo juntas.
−Como? Então o vovô não ficava comigo? Nem o papai? Nem a mamãe? Nem os tios e os primos? Então quem brincava comigo?
−A gente tinha que fazer muitas coisas, e tudo o que se aprendia tinha alguém que ensinava; cada pessoa sabia tudo a respeito de cada coisa, e cada coisa era exclusiva de uma pessoa.
−E hoje como é que acontece?
−Bom, hoje a gente aprende tudo com todo o mundo, tudo o que é preciso e que nos interesse.
−Mas uns sabem mais que os outros.
−É natural. Uns querem saber mais; cada um quer conhecer coisas diferentes. Mas ninguém é obrigado a ser igual, mas cada um sabe o que é necessário conhecer para que tudo funcione aqui em casa. Se alguém não faz a sua parte, todo mundo vai reclamar. Por exemplo, o netinho tem que guardar os brinquedos e limpar a sujeira que faz. O vovô tem que levar o cachorro para passear e contar histórias para o netinho.
−Vovô, e é assim em outros lugares? O que há do outro lado do mundo?
−Bom, no meu tempo a gente viajava, mas isso ficou muito perigoso; ninguém sabe quando pode acontecer outra pandemia. Hoje em dia, cada família trata de produzir aquilo de que precisa, nada mais do que isso. Esses lugares são muito distantes. A gente nem sabe bem o que pode haver lá do outro lado do mundo, ou onde é que ele pode acabar. Por isso, todo mundo nasce, vive e morre no mesmo lugar. A gente só sai quando fica doente. Sabe? Ficou muita coisa boa daqueles tempos.
−Vovô, e o que mais tinha e não tem mais? Você sente falta de alguma coisa?
−Ah! sim, muita coisa. Eu gostava muito do que se chamava futebol, mas é muito perigoso, porque há muita aglomeração. Vinte e dois jogadores, onze para cada lado, um retângulo de cada lado; cada time tinha que fazer a bola passar por aquele retângulo, para fazer um gol; ganhava quem fazia mais gols. Era emocionante e muito bonito! Ah! você nunca ouviu falar de cinema, não é mesmo? Era uma sala grande, onde a gente ficava no escuro e não podia falar. Lá na frente havia uma tela grande, que projetava umas imagens com sons. Passavam uns filmes.
−E o que eram filmes, vovô?
−Filmes eram umas estórias.
−Estórias como as que você me conta?
−Sim, como as que eu lhe conto, mas não eram para dormir, apesar de que muita gente aproveitava para dormir, principalmente quando as estórias eram chatas. Os cinemas eram lugares a que ia muita gente. Também acabaram, para evitar aglomerações e as pessoas não contaminarem as outras.
−Como tudo era diferente no seu tempo! Mas agora eu acho muito melhor; estamos sempre todos juntos; a gente não precisa ir a tantos lugares diferentes e não fica por aí trazendo doenças.
−Sabe? Até hoje eles estão procurando uma vacina. Antes que você me pergunte, já vou lhe explicar. Vacina é um remédio que a gente tomava para não ficar doente. Mas começaram a dizer que a gente não devia tomar vacina e, a partir daí, todo o mundo começou a ficar doente.
−Mas você tomou, não é vovô?
−Claro, e por isso sobrevivi tanto tempo!
−E você me dá uma vacina?
−Agora não é mais necessário; a gente se protege dentro de casa e não leva a doença para nenhum lugar. Somos todos da mesma família. E vou-lhe contar uma última coisa: havia muitos concertos nessa época, não os de consertar as coisas que estragam. Esses concertos eram feitos com muitas pessoas, com sons que a gente nunca conseguia esquecer, porque entravam na alma.
−E quando é que uma coisa entra na alma de alguém?
−Ah! meu querido netinho... Uma coisa entra na alma da gente quando você sente todo o corpo vibrar, fica leve como uma pluma, você tem vontade de abraçar todo o mundo e, às vezes, parece estar mais perto do céu.
−E isso era melhor do que estar com a gente?
−Depende. Seria melhor a gente juntar as duas coisas: esperar sempre por uma coisa nova, diferente, conhecer e experimentar todas as coisas, não ter limites, voar, ir e ter certeza de que poderá voltar, de que cada dia é diferente, de que a gente pode começar, mas não quando, como e se vai terminar.
−Que lindo, vovô! Isso também é uma estória?
−Não, meu lindo; isso é a História.